LIVRO 83
Esse livro está comigo há bom tempo. Vinha adiando sua leitura por achar que perderia tempo em lê-lo e obrigar-me a "interpretar" o pensamento do autor, muito considerado - até demais - por palestrantes e conferencistas que têm por princípio mencionar em suas explanações, filósofos que se destacaram em suas vidas, refletindo com profundidade sobre questões metafísicas.
Então, no caso de Nietzsche é comum esses conferencistas, para fundamentar seu próprio pensamento se referirem a "Nietzsche disse isso", "Nietzsche se baseou nisso" e por aí vai.
Nunca ouvi referências a explanações contidas nas páginas do livro. "Assim falou Zaratustra" é mencionado apenas no tocante às críticas "consagradas" aos valores tradicionais e especialmente ao cristianismo e aos sacerdotes. Dá-se, nessa linha, a repetição de chavões que ressalta essa posição exacerbada do autor:
"Quebrai, quebrai as antigas tábuas vós que aspirais ao conhecimento".
No diálogo havido com um santo ancião que respondera na sua morada no bosque louvar a Deus e fazer cânticos, ao se separarem, rindo como duas crianças, Zaratustra, ao ficar sozinho, "falou assim ao seu coração":
"Será possível que este santo ancião ainda não tenha ouvido no seu bosque que Deus já morreu?"
Afirmação descabida porque afinal de contas o ancião era um santo homem que acreditava em Deus e chega Zaratrusta que reconhecera a santidade para dizer que Deus morrera. São inúmeras as contradições num livro contraditório e às vezes desprovido de senso.
E aos pregadores da religião:
"Isso porque, "conheço demasiado esses homens semelhantes a Deus. Querem que se acredite neles e que a dúvida seja pecado. Também sei de sobra no que eles creem mais."
Há referência velada a Jesus a quem chama de hebreu que morreu cedo demais porque só conhecia as lágrimas e as tristeza do hebreu, "juntamente com o ódio dos bons e dos justos; por isso o acometeu o desejo da morte."
E pergunta:
"Por que não ficou ele no deserto, longe dos bons e dos justos? Talvez houvesse aprendido a viver e amar a terra e também o riso!" Se não morresse retratar-se-ia de sua doutrina com mais idade. "Era bastante nobre para se retratar!" (?)
Por isso, proclama que "Deus está morto", um conceito que tantos mencionam, mesmo que no conjunto da obra, haja um sentido de religiosidade sutil porque sem a divindade sobram exatamente quais valores? Não é por menos que seus hóspedes, "homens superiores" num dado momento, em sua caverna, claro que uma imagem distorcida, passam a adorar um burro. Mas, Zaratustra, repudia essa "solenidade".
E nessa direção, proclama o "sentido da terra" e o surgimento do Super-homem uma figura que, afinal de contas, vaga pelos seus textos confusos dai serem considerados "difíceis"... não me acusem de não os "interpretar", porque se trata de múltiplas páginas desconexas. Vai melhorar na quarta parte do livro em crônicas que possuem mais sentido. Mas, há contradições. A confirmação do delírio.
O homem superior como chamado na outra obra do autor "O Anticristo" é um personagem que despreza a compaixão e neste de Zaratustra, há ambiguidades no tocante "aos bons sentimentos" a serem devotados entre os homens, embora fale ele em amor pelos homens e na parte final da obra ele demonstre "amor" pelos seus hóspedes, estes que exatamente chama de "homens superiores".
À pergunta indesejada: "Como se conserva o homem?"
Zaratustra ao responder pergunta:
"Como será o homem superado? O Super-homem é o que me preocupa; para mim ele é o primeiro e o único, e não o homem; não o próximo, o mais pobre, nem o mais aflito; nem o melhor. Meus irmãos o que eu posso amar no homem é ele ser uma transição e um ocaso. E em vós também há muitas que me fazem amar e esperar."
Um homem a ser esperado, seu Super-homem que ao olhar para a as eventualidades da vida, seria não menos frágil. É é um "ser" a ser adorado?
Nietzsche foi um frágil.
O que resta do seu Super-homem? Quem é ele?
Mas, mesmo assim, "quero ensinar aos homens o sentido da sua existência, que é o Super-homem, o relâmpago que brota da sombria nuvem homem."
E também, "não vos basta reconciliar-vos com aquele que matais. Seja a vossa tristeza amor ao Super-homem; assim justificais a vossa sobrevivência!"
Nietzsche em seu Zaratustra proclama que a alma, a qual ele menciona constantemente no livro todo, é apenas alguma coisa que habita o corpo mortal.
Ao acrobata nos seus últimos momentos de vida após a queda do equilíbrio ele diz:
"Amigo", respondeu Zaratustra, "palavra de honra que tudo isso de que falas não existe, não há demônio nem inferno. A tua alma ainda há de morrer mais depressa do que o teu corpo; nada temas".
Mas, como o homem "carrega" uma alma, ele diz:
"A cada alma pertence um mundo diferente; para cada alma, toda outra alma é um além-mundo." (?)
E também, "a interpretar":
"Tudo se destrói, tudo se reconstrói, eternamente se edifica a própria casa da existência. Tudo se separa, tudo, tudo se saúda outra vez, o anel da existência conserva-se eternamente as estações da existência."
Seus animais com ele confabulam dizendo que bem sabem quem é Zaratustra e o que deverá ser: "tu és o mestre do eterno retorno, é este agora o seu destino"
E a grande revelação no tocante às vidas múltiplas: "que todas as coisas voltam eternamente a nós com elas; que nós temos já existido uma infinidade de vezes, e todas as coisas conosco."
Esses trechos fariam sentido mesmo numa obra kardecista.
O personagem Zaratustra exalta o Sol, seu brilho inspirador, a noite calma e ele em sua agradável solidão, o céu, as montanhas onde fica sua caverna, seu animais de estimação e "conselheiros", a águia e a cobra, mas ele não ousa adentrar no "inexplicável" Universo e suas decorrência. Como se explicam esses fenômenos?
Com Zaratustra, nada com a metafísica.
Na obra há uma página bonita sobre as mulheres, mas não deixa de acentuar:
"Tema o homem a mulher, quando a mulher odeia: porque no fundo, o homem é simplesmente mau, mas a mulher é perversa."
Mas, também,
"A felicidade persegue-me. Deve-se isto a eu não correr atrás das mulheres. Que felicidade é a mulher".
"E algumas invenções são tão boas que, como o seio da mulher, são úteis e agradáveis ao mesmo tempo."
O nome do livro:
O escritor Janko Lavrin (**) explica o porquê do "Zaratustra" na obra de Nietzsche:
"O profeta Zaratustra (ou Zoroastro) fundou outrora uma religião na qual a moralidade era um fenômeno metafísico e um fim em si mesmo. Mas Nietzsche, que rejeitava a ideia de qualquer moral metafísica, restaurou Zaratustra com o objetivo de fazê-lo corrigir o erro cometido por Zoroastro ao fundar a religião do Zandavesta."
Quando o livro escrito entre 1883 a 1885 Nietzsche já vinha sofrendo fortes distúrbios mentais, provenientes do possível avanço da sífilis que teria adquirido na juventude. Sua visão começou a ser afetada e seu estado mental dificultava ele próprio redigir páginas de suas obras, obrigando-se a ditá-las para amigos que o apoiavam.
Há alguma influência desses distúrbios no "Assim falou Zaratustra?
Por cerca de 11 anos, de 1890 até sua morte em 1900 seus distúrbios mentais chegaram a extremos e o fizeram "vegetar" cuidado pela mãe dedicada e depois pela irmã quando da morte daquela. (Ver relato na resenha do livro "O Anticristo) (*),
O autor Janko Lavrin, a par de qualificar "Assim falou Zaratustra" como obra-prima de Nietzsche acentua que fora "ele honesto ao tratar da bancarrota dos valores tradicionais no mundo de hoje, naquele mundo que nos foi legado pelo cristianismo e pelo humanismo" (**).
Humanismo? Pela conceituação tradicional de "humanismo" não me parece adequado ter a obra combatido esse legado do passado.
Notas finais
Não se sintam pouco a vontade, meus amigos, ao ouvirem de seus palestrantes preferidos aquelas afirmações enfáticas de que "Nietzsche defendeu isso ou aquilo, desautorizou Sócrates".
Na minha visão modesta "Assim falou Zaratustra" é uma obra confusa e contraditória que o leitor médio dela não precisa. Há muita coisa melhor a se pôr a ler do que esse delírio do autor.
O autor Janko Lavrin se refere à bancarrota dos valores tradicionais tratados por Nietzsche. Nada mudou nos dias de hoje e com o avanço dos "evangélicos comerciantes" há por eles a dominação às pessoas humildes que se apegam a valores dessas "religiões" que as dominam e as exploram. Devem ser denunciados.
Do livro de Nietzsche para mim sobrou pouco. Me parece que há certo pedantismo intelectual em mencionar constantemente seu nome para fundamentar conceitos em palestras e conferências. Conceitos retóricos que nada produzem que não seja demonstrar um tipo de cultura dispensável.
Referências:
(*) Acessar: "O Anticristo" de Nietzsche
(**) Janko Lavrin, "Nietzsche, uma introdução biográfica" (Edições Bloch - )