A escritora:
A Autora, diz a contracapa, "só conheceu alguma repercussão maior no Brasil em 1980: no começo desse ano foi eleita para a Academia Francesa", Tornou-se a primeira mulher a entrar para aquela instituição.
A obra:
Explica a tradutora Martha Calderaro: "Descobri Marguerite Youcenar em Paris, em 1962 através deste livro monumental, elaborado, escrito e construído à maneira das antigas catedrais, durante anos de trabalho, de pesquisas, de aprimoramentos. Iniciado em 1924 e concluído cerca de vinte e sete anos depois..."
O livro seria o relato de cartas de Adriano, suas memórias, dirigidas a Marco que creio seja explicado no livro quem seja: "A cada regressio a Roma, nunca deixei de ir saudar meus velhos amigos, os Veros, espanhóis como eu, uma das familias mais liberais da alta magistratura. Conheci-te desde o berço, pequeno Anio Vero que por minha iniciativa, te chamas Marco Aurélio."
Quem foi o "divino" Adriano Augusto:
Imperador romano de 117 a 138, "filho" de Trajano a quem sucedeu. Não teve filhos, mas "adotara Lúcio Élio César" que seria seu sucessor mas faleceu antes e, então, "adotara" Antonino, que foi seu sucessor. Era casado com Sabina, um casamento "distante".
Adriano, antes de se tornar Imperador, participara de campanhas militares, fora cônsul sempre com êxito.
Há indicações de que Trajano não pretendia "adotar" Adriano como seu sucessor. A digna esposa do Imperador, Plotina, porém, demonstrava muito afeto por Adriano - se conheciam havia muitos anos - pelo que teria forjado o édito de adoção permitindo que ele se tornasse, por sua vez, o sucessor de seu marido moribundo.
Adriano, na velhice, teria tendências suicidas.
Relendo o livro:
A obra já foi bestseller na década 80 salvo severo engano meu. Eu o li por aqueles anos, num processo de dificuldades soníferas: o livro é denso, páginas fechadas muitas sem parágrafos, os pensamentos e relatos se alteram e por aí vai.
Mais atento agora, "descobri" que o livro não é, digamos, a biografia de Adriano. Não. A obra é de ficção, um romance, com diversos eventos históricos que foram possíveis apurar do Imperador.
Notas no final do livro revelam essa realidade explanando sobre as dificuldades em encontrar fontes seguras sobre Adriano.
José Saramago, na sua obra "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", também imagina fatos e pensamentos sobre a vida de Jesus. Nesse caso e por causa disso, qualifiquei seu livro como "OEvangelho segundo Saramago" (*)
Então, os pensamentos íntimos de Adriano, são pensamentos da Autora que muitas vezes tenta os aproximar do imperador, valendo-se de fragmentos dalgum documento encontrado, não necessariamente convalidado. Incertezas da originalidade, da autenticidade.
O que há de certeza é que Adriano fora considerado um pacifista. Viajava por todo o império romano, ficava pouco em Roma, tinha paixão por Atenas, seus monumentos, seus filósofos e sua arte.
"Roma já não cabe mais em Roma: a partir de agora deve decair ou
igualar-se à metade do mundo."
É verdadeiro também, pelo conjunto da obra, que o Imperador não era muito próximo de mulheres, mesmo de sua esposa. Mas, há relatos de seu envolvimento com amantes, uma delas a amou "deliciosamente".
Sua paixão incontrolado fora o jovem Antinoo com seus 17, 18 anos que ele venerava, numa relação homoafetiva.
Quando o jovem faleceu com seus 19 anos, afogado, nada muito explicado, Adriano sofrera muito. Mas, fatos que confirmam essa paixão exacerbada foram os monumentos que erigiu em homenagem a Antinoo e as moedas que mandou cunhar com sua efígie.
Curioso que, para tecer uma identidade dessa paixão Adriano - Antinoo, a Autora algumas vezes na obra lembra a paixão entre o mítico Aquiles e seu fiel parceiro Pátroclo. Ao ser morto Pátroclo por Heitor na guerra de Troia, profundamente amargurado Achiles homenageia seu parceiro em lágrimas e lamentações. Ao "relatar" os episódios principais da Ilíada de Homero destaquei este trecho, quando Zeus, vendo que Heitor fora morto por Aquiles remete a deusa Tétis - mãe de Aquiles - com a ordem de que teria ele que devolver o cadáver do inimigo aos troianos:
Assim se deu, observando Tétis que Aquiles já chorara demais pela morte de Pátroclo:
- Meu filho, por quanto tempo consumirás teu coração chorando e sofrendo, sem pensar no alimento e no leito? Coisa agradável é deitar-se com uma mulher para o amor. (**).
Então eu me pergunto até que ponto há relevâncias fundamentais na obra densa da escritora francesa? Não sei como responder.
Algumas "reflexões" de Adriano (?):
● Os escrúpulos religiosos dos gimnosofistas e sua repugnância
pelas carnes sangrentas ter-me-iam impressionado, se não perguntasse
a mim mesmo em que o sofrimento da erva que se corta diferia
essencialmente do sofrimento dos carneiros que se degolam. E refletia
se nosso horror ante os animais assassinados não estaria condicionado
ao fato de nossa sensibilidade pertencer ao mesmo reino;
● De todas as
venturas que lentamente me abandonam, o sono é uma das mais
preciosas, embora seja das mais comuns também. Um homem que dorme
pouco e mal, apoiado sobre dezenas de almofadas, medita com vagar
sobre essa volúpia diferente. Concordo em que o sono mais perfeito é
necessariamente um complemento do amor: repouso tranquilo, refletido
sobre dois corpos. Mas o que me interessa aqui é o mistério
específico do sono saboreado por si mesmo, o incontrolável e
arriscado mergulho a que se aventura todas as noites o homem nu, só
e desarmado, num oceano onde tudo é novo: cores, densidades, o
próprio ritmo da respiração, e onde reencontramos os mortos;
● O homem mais
tenebroso tem seus momentos iluminados: tal assassino toca
corretamente a flauta; tal feitor, que dilacera a chicotadas o dorso
dos escravos, é talvez um bom filho; tal idiota partilharia comigo
seu último pedaço de pão. Existem poucos a quem não se possa
ensinar convenientemente alguma coisa;
● Confessei-lhe
meus temores: não me sentia inteiramente isento de crueldade nem de
outras taras humanas: acreditava no lugar-comum que prescreve que o
crime atrai o crime, e na imagem do animal que já provou o gosto do
sangue;
Considero a maior
objeção a todo e qualquer esforço para melhorar a condição
humana o fato de os homens serem, talvez, indignos dele;
● Ser deus obriga,
em suma, a possuir mais virtudes do que as de um imperador;
● E quem diz morte
diz também mundo misterioso ao qual talvez tenhamos acesso através
dela. Depois de tantas reflexões e experiências por vezes
condenáveis, ignoro ainda o que se passa do outro lado dessa cortina
negra. Mas a noite síria representa minha parte consciente de
imortalidade;
● Passei toda uma
noite (com Quadrato, bispo dos cristãos – que eram protegidos
pelas leis romanas) a discutir com ele a injunção que consiste
em amar ao próximo como a si mesmo; é demasiado contrária à
natureza humana para ser sinceramente obedecida pelo homem comum, que
sempre amará a si mesmo, e não convém de modo algum ao sábio, que
nunca ama particularmente a si próprio.
Referências:
(*) Acessar:"O Evangelho Segundo Jesus Cristo"
(**) Acessar: "A Ilíada"