LIVRO 77
Quando um escritor assim se qualifica deve cuidar antes de conhecer
um Dostoiévski para ponderar o que é escrever uma história
Já falei de outros dois livros dele
(*), mas a sua obra-prima, escrita datado de 1865, além da história
com forte cunho psicológico descreve todos os transtornos e medos
que afetam constantemente o personagem principal, Raskólnikov que,
pela pobreza, vive ocioso, e a falta de perspectiva ao abandonar a
faculdade de direito por não poder pagá-la.
E é nessa dia a dia de pobreza, a
convivência com personagens à margem da vida, sobrevivendo de
migalhas e, em muitos casos, perdidos na bebida que transita
Raskolnikov .
Relato impressionante é o do
personagem Marmieládov, um alcoólatra
inveterado que anula a família, deixa-a na miséria absoluta por
conta da bebida. Sua filha Sônia, prostitui-se para ajudar sua
família (madrasta e filhos) e ele vive angustiado com o vinho que
precisaria beber sem freio. E, para isso, subtrai valores ínfimos
que serviram para a alimentação de seus filhos. Ao chegar à sua
pobre moradia, sua penitência eram as surras que a mulher
desesperada lhe impunha:
“–
Isso me consola! Não creia que isso seja para mim um sofrimento, mas
sim um prazer, senhor! – exclamou ele, enquanto Ekatierina
Ivánovena lhe sacudia com força a cabeça, chegando mesmo a bater
com ela no assoalho”.
Marmieládov
teria um fim trágico: atropelado por uma diligência, foi pisoteado
pelos cavalos, sofrendo graves ferimentos. Nos seus momentos finais,
levado para casa, diante da família miserável em sua volta, porque
o alcoolismo a destituía de tudo, não do amor mesmo da esposa e
filhos, faleceria.
Raskólnikov
dera toda a assistência à família do amigo, até mesmo deixando um
soma em dinheiro que recebera da mãe para o seu próprio sustento.
Essa visão e esse modo de vida de tanta
carência, numa noite, no seu quarto diminuto e pobre, Raskólnikov
tem um pesadelo que se desdobra: o espancamento até a morte de uma
eguazinha obrigada por seu dono a puxar pesado fardo, com bêbados
sobre a carroça. Não conseguindo mas se esforçando, é espancada
até a morte sob as gargalhadas daquele gente perdida pela bebida. E
o menino muito penalizado, nada pode fazer para evitar o crime contra
o animal indefeso.
No outro relato do
sonho aterrador o grande autor russo descreve as imediações da
taberna:
“Havia sempre ali uma turba que berrava, ria, se
enfurecia e brigava, ou que cantava com voz rouca coisas de apavorar!
Nos arredores da taberna sempre andavam bêbados de rostos
horríveis!... (...) A passagem que conduz à taberna está sempre
coberta de uma poeira negra”.
Esses os terrores psicológicos de sua vida de ócio, ex- estudante Raskólnikov alimentando-se precariamente mas contando com a presença da
serviçal da pousada (Nastássia) que sempre lhe servia alguma coisa,
um resto de chá e de comida.
O ambiente posto na
obra, e de vida pobre, de fome e falta de perspectivas.
Num certo dia
Raskolnikov estivera mais uma vez na casa da usuraria Aliona Ivanóvna
para empenhar um pequeno anel, recebendo valor irrisório. O modo de
agir de Aliona o fazia pensar nalguma "coisa grave" em
relação à vida dela porque se valia do desespero dos pobres que
chegavam até ela com algum objeto de valor recebendo quantia
irrisória.
Numa taverna nesse
mesmo dia ouve o diálogo entre dois homens que se referem a velha
Aliona como uma figura desprezível para a sociedade e que se fosse
morta o mundo nada perderia.
A partir desse
momento Raskólnikov engendra o crime e o roubo justificando-o,
mentalmente, como uma maneira de avançar na vida, livrando a
sociedade de uma mulher perniciosa.
Num artigo defendera
que homens extraordinários poderiam cometer assassinatos para um bem
maior. E nessa linha de raciocínio se perguntava como reagiria
Napoleão, precisando evoluir, se se deparasse com um "obstáculo"
dessa natureza...
Ademais, o
assassinato individual é um crime. O extermínio de cidades numa
batalha passa a ser um fato histórico.
E nesse drama que
vai assumindo, com suas fraquezas e suas febres e seus distúrbios
físicos e psicológicos, prosseguindo nos planos, consegue na
própria pousada obter correndo risco de chamar a atenção se
visto, um machado que esconde entre suas roupas.
Faz um embrulho
pesado de um peça falsa de tal maneira que a usurária perdesse
tempo em abri-lo e nesse momento ataca a mulher com machadadas
e a mata. Sai a procura do cofre, do dinheiro, mas num estado
emocional incontrolado obtém um pequena bolsa e algumas joias.
Mas, enquanto nessa
busca ouve que a irmã de Aliona, Lisaiveta chegara à casa e ao se
deparar com a cena terrível da irmã morta, estanca sem reação.
Raskólnikov decide naquele seu delírio e pânico, matá-la também
com o machado.
Havia operários
trabalhando num quarto ao lado, dificultando sua fuga. Mas, consegue
sair do prédio sem ser visto.
Esconde o produto do
roubo num terreno sob uma pedra e de nada se utiliza, mal sabendo
exatamente o que obtivera com o roubo.
A partir dai, entre
pesadelos, febre e delírios, sua vida se torna infernal. Nos seus
delírios chega a mencionar joias num esconderijo mas não resultando
em suspeitas.
Nos momentos de
maior angústia, pensava em se entregar ou talvez se suicidar.
PERSONAGENS DA
HISTÓRIA
Avidótia
Romanovena (Dúnia) / Pulkéria Alieksádrovna
Irmã e mãe
de Raskolnikov trazidos a São Petersburgo pelo noivo de Dúnia,
Lújin, alojando-as em pousada precária. O irmão se opôs de modo
veemente ao casamento revelando-se, depois, que Lújin era de má
índole. Isto é, sem escrúpulos.
Ambas amavam Raskólnikov e tudo faziam por ele, mesmo na condição que o encontraram: empobrecido, ocioso e adoentado morando num pequeno cômodo.
Razumíkhin
Amigo dedicado de
Raskólnikov muito o ajudara em sua doença e quando resolvera este
deixar a família porque tinha consigo o grande segredo do duplo
assassinato, a verdade prestes a eclodir e querendo poupá-la de tudo que
adviria, foi Razumíkhin que dera todo o apoio à sua mãe e irmã. Mais tarde se casaria
com Dúnia equilibrando a família de Raskólnikov. O casal planejava
a criação de uma editora.
Porfiri
Pietróvitch
Juiz de instrução
que ao somar os indícios do crime contra as irmãs, o que deixara
escapar Raskólnikov em contatos com ele e ao saber que voltara à
cena do crime, meio combalido, perguntando aos operários que lá
trabalhavam se havia limpado a mancha de sangue.
Também as informações que lhe foram passadas pelo médico Zóssimov que cuidava de Raskólnikov quando de sua febre alta e o que balbuciou em seus delírios.
Há o ensaio de uma
mudança de rumos, num momento crucial entre ambos: surge Mikolka,
um operário que trabalhava numa moradia vizinha à da assassinada,
declarando-se o verdadeiro assassino. Embora tumultuasse as
investigações, foi revelado, depois, que Mikolka tinha lá suas
crenças que incentivavam o sofrimento.
Porfiri o acusa
formalmente de ser o assassino das mulheres. Ele nega.
Então, diante de
uma situação insustentável, Raskólnikov vai se convencendo que o
melhor seria confessar à policia que era ele o autor dos
assassinatos.
Confessando, sua
pena seria menor.
Ekatierina
Ivánovena
A víuva
de Marmieládov e madrasta de Sônia tem um fim trágico com a
tuberculose agravada.
Quando Sônia foi
injustamente acusada pelo noivo de Dúnia, Lújin de ter roubado uma
nota de cem rublos, Ekatierina demonstrou todo seu amor à enteada
defendendo-o às lágrimas.
No desespero pela
fome dela e dos filhos, fantasia-os com andrajos e saem pelas ruas
promovendo cantares tristes porque as crianças choravam e sofriam
muito, a troco de alguns copeques ou rublos como um homem lhe deu, mas
revelara sua loucura e a humilhação de uma "mulher nobre" na miséria.
Sua morte se
dera num clima de emoção.
Svidrigáilov, um
personagem contraditório, que herdara valores de sua esposa falecida
- fora acusado de a ter assassinado - faz um depósito em rublos para
garantir um bom orfanato para os órfãos. Também premia Sônia com quantia importante porque ela não poderia continuar na "mesma vida".
Sônia
Raskolnikov a
conhecera nos eventos que resultaram na morte de Marmieládov.
Começa a se
relacionar com ela, a atormenta com falta de perspectivas da vida de
ambos, convida-a a fugirem para longe de tudo. E, então, confessa o
duplo assassinato.
Sônia, atônita,
entra em desespero e sugere que ele se entregue à polícia para
pagar pelos crimes.
Depois do incidente
na moradia de Svidrigáilov fora Sônia quem informara a Dúnia
os assassinatos praticados por Raskólnikov.
Svidrigáilov
Viera para São
Petersburgo onde tinha uma jovem noiva.
Morando num cômodo
contiguo ao de Sônia, ouviu toda a confissão de Raskólnikov.
Dúnia no passado
fora professora na casa de Marfa Pietrovena com quem Svidrigáilov era casado.
Então, apaixonado
por Dúnia, ele a convida por carta para um encontro em sua moradia
quando lhe revelaria um assunto muito grave sobre o irmão.
Ela vai e ele
apaixonado, destacando quão linda era, tenta violentá-la. O
suspense da ameaça é angustiante ao leitor. Ela saca um revolver
que fora de Marfa no passado que ela obtivera
e diante do iminente ataque ela atira atingindo Svidrigáilov de raspão na
cabeça.
Dúnia o acusa de ter assassinado a esposa Marfa.
Svidrigáilov deixa Dúnia sair, limpa o sangue que escorreu de sua cabeça ferida, toma o revolver
que ficara no chão e sai.
Sob chuva
intensa, vai tarde da noite à casa dos país de sua noiva, deixa um
valor significativo em dinheiro retira-se suicidando-se com um tiro na fonte direita.
CONDENAÇÃO
Por ter confessado
os assassinatos perante as autoridades policiais, sua condenação
fora de oito anos com trabalhos forçados, numa prisão na Sibéria.
Sônia muda-se para
lá e dá todo o apoio possível a Raskolnikov fora da prisão.
A mãe morre
sem saber ao certo porque Raskolnikov não a visitara mais embora nos último
dias de vida desconfiasse que o filho enfrentava graves dificuldades.
Dúnia e Razumíkhin
planejam mudar-se para a Sibéria no futuro.
Faltando sete anos,
ainda, para o cumprimento da pena, Raskolnikov e Sônia constatam que
estavam apaixonados.
CONCLUSÕES
O livro é
extraordinário. O relato dos distúrbios psicológicos pela culpa
que atormenta Raskolnikov, a febre e o delírio tornam o livro
uma novela de suspensa "interminável". Há momentos angustiantes. Os momentos que antecedem o tiro dado por Dúnia ameaçada de violação por Svidrigáilov é um deles.
Não sei, mas vejo alguma relação entre os "homens extraordinários" do tema do artigo de Raskolnikov, acima do bem e do mal, alguma coisa parecida com os "homens superiores" de Nietzsche sem compaixão e sem religião. Nietzsche era leitor de Dostoiévski.
Em termos de "herói assassino" pode ser lembrado, Stalin.
É um livro que o
amante da leitura não pode deixar de ler ou reler.
Excepcional em suas
mais de 550 páginas.
Referências
(*) Do mesmo Autor:
“Recordações da Casa dos
Mortos”, acessar:
https://resenhadoslivrosqueli.blogspot.com/2018/01/34-recordacao-da-casa-dos-mortos-de.html
“O Jogador”, acessar:
https://resenhadoslivrosqueli.blogspot.com/2018/07/47-o-jogador-de-fiodor-mikhailovitch.html