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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O HOMEM QUE CALCULAVA de Malba Tahan

Livro 24



Malba Tahan é o pseudônimo de Julio Cesar de Mello e Souza.

Quem não ouviu alguma coisa sobre esse livro clássico do educador e matemático Malba Tahan?
Mas, o título do livro já revela, por si só, a que se refere: fórmulas matemáticas, algumas interessantes que o brilhante Bereniz, “o homem que calculava”, as usava com sabedoria, resolvendo todas as questões e desafios que lhe eram submetidos. Sempre pela matemática.


A história se situa no século XI e Bagdá era a célebre cidade, “a pérola do Oriente”.

As narrativas se dão entre personagens árabes-muçulmanos.

A história começa com o encontro do seu narrador e o “homem que calculava”, quando “voltava eu, certa vez, ao passo lento do meu camelo, pela Estrada de Bagdá, de uma excursão à famosa cidade de Samarra, nas margens do Tigre, quando avistei, sentado numa pedra, um viajante, modestamente vestido, que parecia repousar das fadigas de alguma viagem.”

Era Bereniz. “o homem que calculava”. Nasceria naquele encontro uma forte amizade entre eles.

Uma primeira disputa que Bereniz resolveu deu-se com a divisão de 35 camelos herdados por três irmãos: ao mais velho caberia a metade(17,5 camelos), ao irmão do meio a terça parte (11,67)  e ao caçula, a nona parte (3,15 camelos).

A divisão não seria exata, dai os desentendimentos entre os irmãos.

O que fez o “homem que calculava”?

Tomou emprestado o camelo do narrador e amigo, inteirando 36 camelos.

A divisão:

Ao herdeiro mais velho, coube 50%, 18 camelos: (em vez de 17,5);
Ao herdeiro do meio: 1/3, 12 camelos (em vez de 11,67)
Ao herdeiro mais moço: a 9° parte, 4 camelos (em vez de 3,88)

Todos foram beneficiados pela divisão. A soma: 18 + 12 + 4 = 34

Sobraram 2 camelos: um  foi devolvido ao amigo-narrador e o outro,  aquele um que sobrou, Bereniz se apossou como seu.

Os irmãos ficaram contentes com a fórmula da divisão praticada pelo “homem que calculava” e não se opuseram em entregar o camelo que “sobrou”.

Outras formulações matemáticas ocupam todo o livro.

Bereniz se casou com Telassim, que era cristã (filha de 17 anos do poeta Iezid Abul Hamid). Bereniz repudiou a religião de Maomé e adotou integralmente o Evangelho de Jesus.

Fez questão de ser batizado por um bispo que sabia a Geometria de Euclides.


Em 1258, relata o livro, “uma horda de bárbaros e mongóis atacou a cidade de Bagdá.” (...) A cidade foi saqueada e cruelmente arrasada.”
“A gloriosa Bagdá, que durante 500 anos fora um centro de ciências, letras e artes, ficou reduzida a um montão de ruínas.”

Apêndice

Linhas acima foi destacado que "Bereniz repudiou a religião de Maomé e adotou integralmente o Evangelho de Jesus".

um apêndice que trata do islamismo para a devida reflexão pelo que se passa nos tempos atuais:


A forma “Islã” é derivada do árabe “assalã”, que significa paz, harmonia, confraternização. Islã exprime, afinal, resignação à vontade de Deus.

Para o árabe muçulmano, a denominação de infiel é dada a todo indivíduo não-muçulmano, isto é, ao indivíduo que não aceita os dogmas do Islã e não segue a trilha do Alcorão, que é o Livro de Allah. (*)

Um muçulmano piedoso, sincero, quando se refere a um infiel (cristão, idolatra, pagão, judeu, agnóstico ou ateu), isto é, quando cita o nome de um servo de Allah que viveu no erro, nas trevas do pecado (depois da revelação do Alcorão), por não ter sido esclarecido pela fé muçulmana, acrescenta este apelo:

- Allah se compadeça desse infiel!

Ou recorre a esta fórmula, que é, igualmente, piedosa:

- Com ele (o infiel) a misericórdia de Allah!

Aceitam os muçulmanos, como dogma, que o infiel, depois da vitória do Islamismo, tendo vivido na heresia, longe da verdade, estará, fatalmente, depois da morte, condenado às penas eternas. É preciso, pois, implorar sempre para os infiéis (especialmente para os sábios), a clemência infinita de Allah, o Misericordioso. 


(*) O Alcorão foi “sistematizado” entre 632 a 650 dC.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

MARIA MADALENA E O SANTO GRAAL de Margaret Starbird

Livro 23

(Subtítulo: “A mulher do vaso de alabastro”)

Na capa do  livro de Margaret Starbird há indicação de que é um dos que inspiraram “O Código Da Vinci” de Dan Brown.
A autora que inseriu em sua obra inúmeros quadros antigos e imagens que indicavam o simbolismo do "sagrado feminino", o Santo Graal, a própria Maria Madalena, esposa de Jesus, não se aproveitou da célebre pintura “A Santa Ceia”, de Leonardo Da Vinci como fez Dan Brown em seu “O Código Da Vinci”.



















A essência do livro se refere à possibilidade de ter sido Jesus casado com Maria Madalena e, nessa condição, não tinha ele, a tão apregoada pureza sexual.

Nos primórdios do catolicismo, essa ideia era rejeitada de modo radical. No prefácio de livro, o Rev. Terrance A. Sweeney, Ph.D critica a Igreja pela sua posição antissexual, descrevendo religiosos que chegaram ao extremo: “Justino Mártir era tão avesso à intimidade conjugal que não podia imaginar Maria concebendo Jesus por meio do sexo. Em vez disso, ele afirmou que ela concebeu ainda virgem. Orígenes, que acreditava que Jesus fizera voto de castidade, castrou-se a si mesmo.”

A Autora era (ou é) católica fervorosa e ao ler o livro “O Santo Graal e a linhagem sagrada” decidiu pesquisar para desmentir seus autores que imaginava faria com facilidade mas, à medida que avançava nos estudos percebeu que a “heresia Maria Madalena” possuía inúmeros indícios que poderiam indicar a sua veracidade, isto é, de que fora ela esposa de Jesus.

Essa ideia crescente nos primeiros séculos foi violentamente combatida pela Igreja.

Nesse passo, passou a predominar aquilo que a autora qualifica como prejuízos da predominância do masculino (), nas relações com o mundo. O equilíbrio entre o masculino e o feminino fora rejeitado, significando, com a predominância do homem, materializou-se um mundo, ao longo dos séculos, belicoso, “brandindo armas irresponsavelmente, atacando com violência e destruição.”

Não houve, então, a união espiritual dos Noivos, o que constituiria o sagrado feminino representado por Maria Madalena, qualificada nas escrituras como prostituta. Jesus não poderia ter uma esposa...

Maria Madalena - o Santo Graal - fora alijada, então, desse equilíbrio de sentimentos.

[Nestes tempos tecnológicos, não houve de modo decisivo em considerar a natureza como elemento de inspiração a ser respeitado, advindo a poluição ameaçadora e, no tocante ao celibato católico, os escândalos da pedofilia – por muitos anos abafados pelos escalões da Igreja].

Jesus, casado com Maria Madalena, fora condenado pelos romanos não só pela blasfêmia ao se opor aos sacerdotes mas também pela insurreição latente  que ele personificava. A cada dia aumentavam seus seguidores que aceitavam suas pregações e milagres.

Por esses crimes, que resultaram na sua crucificação, sua família corria perigo sério de severas represálias pelo poder romano. 

Guiada por José de Arimatéia – amigo de Jesus – Maria Madalena viajou para o Egito, Alexandria, grávida.

Ela era o Santo Graal. O Sangraal - o sangue real. ()

Deu a luz a uma menina que seria filha de Jesus. Estranhou muito porque esperava um menino que seria o condutor de outras profecias bíblicas.

Mas, assim não se deu.

Fugitiva, esquecida, tomou seu lugar, Maria, a mãe de Jesus que tivera outros filhos. Em muitas imagens e lendas a referência a Maria Madalena fora trocada por Maria mãe de Jesus considerada virgem fora posta como a figura feminina a ser reverenciada.

Mas não a Noiva de Jesus.

Na capa do livro há referência à mulher do vaso de alabastro.

O vaso de alabastro, um tipo de cerâmica era utilizado para acondicionar óleos e produtos especiais, como o perfume naqueles tempos.

A autora acredita que a passagem do Novo Testamento, em Marcos, 14,3, a mulher ali referida, que derramou unguento perfumado de muito valor sobre a cabeça de Jesus, fora Maria Madalena.

Relata a autora a vida espiritual dos cátaros, que tinham as mulheres num mesmo nível e direitos dos homens. Levavam vida simples, eram vegetarianos, praticavam o evangelho nos seus mandamentos originais. Não reverenciavam a cruz e a crucificação porque representavam sofrimento. Não precisavam de sacerdotes nem de igrejas. O evangelho era difundido nas casas de seus moradores. Rejeitavam, então, os dogmas distorcidos da Igreja que no seu âmago, identificavam-se pela soberba, pela vaidade e pelo autoritarismo.

Tanto que a inquisição, atacando a região da Provença, França, em 1244 vencendo a resistência dos cátaros que se recusavam a seguir os dogmas da Igreja, cerca de 200 deles foram queimados vivos.

Por tudo, insiste a autora a falta do “sagrado feminino”, um fator de equilíbrio nas ações humanas.

Há muito mais no livro.




O PRESIDENTE NEGRO de Monteiro Lobato

LIVRO 21


















Por ocasião da última campanha presidencial americana na qual se sobressaíra Barack Hussein Obama eleito Presidente dos Estados Unidos em 2009, foi lembrada  antiga obra de Monteiro Lobato, “O Presidente Negro”, escrita em 1926.

A história se desenrola no ano de 2228 e nesse ano os Estados Unidos elegeram um presidente negro, no caso Jim Roy.

O livro de Lobato fora escrito nem 40 anos completos da libertação dos escravos por aqui.

Então, para muitos até hoje - e o que dizer dos Estados Unidos? - os negros sofrem preconceito racial, em algum momentos de forma violenta e perversa.

Mas, será uma obra racista? Diremos impressões linhas à frente.

O livro surpreende.

De início a obra parece que desprovida de seriedade, considerando o nome da empresa para a qual trabalhava o "herói" do livro, Ayrton: "Sá, Pato & Cia Ltda".

A esses patrões soberbos, Ayrton tinha forte submissão.

Porém, para ostentar situação diferente do que mero funcionário burocrático, compra um Ford e por causa do carro recebe até aumento de salário.

Mas, não dura muito. Acidenta-se, fere-se sendo socorrido pelo sábio professor Benson que o conduz até seu castelo na região de Friburgo e lá conhece miss Jane.

Benson o hospeda por  semanas no castelo,  período em que é iniciado nos experimentos do professor. 

As explanações ficam aos cuidados da lindíssima filha Jane, loura de olhos azuis.  

O professor falece, suas invenções são destruídas, mas os eventos futuros (pelo porviroscópio) ficam por conta de miss Jane que convida Ayrton para encontros todos os domingos.

Futurismos de Lobato, "apostando" nas ondas de rádio:

Pelo radio-transporte, desnecessidade de se deslocar para o trabalho que poderá ser feito na própria casa (homeoffice);

● Possibilidade da entrega de produtos sem o entregador - não está afirmado mas tudo se resolveria pelo rádio-transporte (drones?);

Voto eletrônico. Os eleitores não saíam de casa para votar: "Um aparelho engenhosíssimo os recebia (os votos) e apurava automática e instantaneamente";

As comunicações por ondas de rádio levariam imagens às residências (algo como televisão).

Mas, na sua história passada nos Estados Unidos em 2228, a população negra era, digamos, um problema para a raça "ariana" branca e superior, algo levemente parecido com o que se daria anos depois com o nazismo em relação aos judeus e outras populações ditas "inferiores". 

A eugenia resultara na beleza de todos os indivíduos. Os tarados e outros indesejáveis por esse processo, foram banidos. 

Os negros por técnicas aplicadas eram "desbotados", um branco indisfarçavelmente "diferente", mas os cabelos sempre carapinhados.

Não havia o casamento entre as raças, que seria um erro, porque ambas se "estragariam". Então, a comunidade branca pretendera até mesmo transferir os negros para alguma região na Amazônia, na discussão do que fazer com eles.

Mas, e a eleição do presidente negro como se deu?

Para tal vaticínio, se valera Lobato dos seguintes argumentos:

● Os partidos Republicano e Democrata uniram-se como Partido Masculino contando com o apoio dos negros;

● O Partido Feminino contava com a liderança de “miss” Evelyn Astor, rica de todos os dotes de Inteligência, de cultura e da “maquiavélica sagacidade feminina”, se juntava um elemento perturbador no novo jogo político presidencial: “a sua rara beleza”.

Ademais, “nesse ano de 2228 já a mulher vencera o seu estágio de inferioridade política e cultural...”

Com a divisão dos brancos, foi eleito o líder negro Jim Roy, com 54 milhões de votos que "traiu" o partido Masculino.  “Miss” Astor obtivera 50,5 milhões de votos e Kerlog, branco, 50 milhões. E assim, fora eleito o primeiro presidente negro, Jim Roy: 

“Apesar de disporem de um eleitorado de quase o dobro os brancos perderiam a presidência graças à cisão entre os dois sexos provocado pelo “elvinismo” (de “miss” Elvin, na história feminista radical).

Os homens não passavam de gorilas sem pelos...

O que fazer? se perguntava a cúpula branca, coordenada pelo presidente Kerlog.

Reuniões dos luminares brancos se sucediam até que um idoso do grupo John Leland inventor famoso faz uma proposta "definitiva" ao "problema dos negros".

Mantido em sigilo absoluto, uma fórmula contendo um princípio ativo denominado de "raios ômega", possibilitava que os negros poderiam alisar os cabelos.

Mas, na sua fórmula, estava incluída uma substância esterilizante.

Todos os negros aderiram ao alisamento dos cabelos carapinhados e com o tempo, foram desaparecendo porque estéreis,

O presidente eleito Jim Roy,  que havia aderido ao alisamento dos cabelos, num encontro "emocionante" provocado pelo presidente Kerlog - que admirava o líder negro -, comunica-lhe o golpe fatal.

Jim Roy no dia seguinte é encontrado morto.

Novas eleições, Kerlog é reeleito agora com o apoio incondicional das mulheres  que voltaram a considerar os homens como seus companheiros inseparáveis contrariando de modo definitivo a tese do elvinismo de que o homens eram elementos estranhos em fazer par com elas. Elas seriam de outra origem, as sabinas raptadas...

Evelyn Astor se casaria com Kerlog.

Então, a solução final aos negros, fora uma patifaria monumental.

Encerrando o livro, efetivou-se o romance entre o apaixonado Ayrton, tímido, funcionário burocrata e a linda, culta e inteligente miss Jane, a loura de olhos azuis que foi beneficiado pela convivência com sua mestra. E daí, o amor... selado por um beijo "sem fim" do tipo do  de John Barrymore astro de cinema daqueles idos 

O livro é interessante mas não posso deixar de considerar seu cunho racista.


Apêndice

Claro que esse “erro” de pouco mais de 200 anos em suas previsões, deve-se ao fato de que, nos tempos em que Lobato escrevera a história, o preconceito racial nos Estado Unidos era muito mais exacerbado do que nos dias de hoje.

Essa intolerância se manifestara de modo intenso na década de 60, relembrando-se os conflitos violentos havidos em 1962, na cidade de Los Angeles nos quais negros praticaram saques, depredações e agressões, depois da absolvição de policiais que covardemente haviam espancado um negro a ponto de provocar fratura craniana. 

A absolvição dos policiais fora decidida por um júri composto de brancos.

Essas cenas têm se repetido até hoje com grande repercussão.

Dentre todos esses conflitos e mortes, mencione-se o assassinato de Martin Luther King, ativista negro, religioso e pacifista, então com forte influência política, morto em 04.04.1968. Há dúvidas sobre sua morte, o mandante e as motivações; há até mesmo menção a uma “teoria conspiratória”. Ele tinha um sonho:

“Eu tenho um sonho de que um dia esta nação vai se levantar e viver o verdadeiro significado de sua crença: 'Consideramos essas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais'. Eu tenho um sonho de que um dia, nas montanhas da Geórgia, os filhos de antigos escravos e os filhos de antigos donos de escravos serão capazes de sentarem-se juntos à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas sim pelo conteúdo de seu caráter.”

Registre-se que na época da morte de Luther King já vigorava nos Estados Unidos, desde 1964, a lei dos direitos civis – de cuja luta participara – que proibia discriminação no que se refere à religião, à nacionalidade, inclusive no âmbito profissional. 

Pouco tempo depois, a proibição de discriminação se estendeu a indivíduos com mais de 40 anos e de práticas salariais diferenciadas entre homens e mulheres, que exerçam trabalhos iguais ou semelhantes.

Tudo isso sistematizado na denominada “ação afirmativa”, que garantiria “oportunidades iguais de emprego entre os americanos”, indica que os negros de lá, de um modo ou outro, conquistaram e conquistam oportunidades efetivas de ascensão social e profissional. 

No cinema, os negros deixaram de ser coadjuvantes para se tornarem protagonistas. O cinema é uma espécie de vitrina da sociedade americana o que de bom e ruim. Mas, esses avanços não significam que se estabeleceu o paraíso entre negros e brancos.

O fato significativo é que a vitória do mulato Barack Obama, fora sufragado por brancos, negros, hispânicos, incluindo nomes influentes. Todos acreditavam que a vitória de Obama significaria uma guinada necessária nos padrões americanos. A realização do sonho do Martin Luther King. 

O nosso Monteiro Lobato que “previra” a possibilidade de um presidente negro nos Estados Unidos para daqui a dois séculos não poderia, no seu tempo de tantos conflitos raciais, imaginar todas essas mudanças, o avanço tecnológico vertiginoso e a “inacreditável” internet.

O racismo e o preconceito continuam, mesmo entre nós.

Até quando?




UMA VIDA ALÉM DAS EXPECTATIVAS do ator Sidney Poitier

Livro 22

Sabem desses livros vendidos em grandes supermercados que vão ficando à deriva, olhados, quando olhados, com indiferença?
São muitos os que leem de tudo, mas eu ainda acredito que as redes sociais tomam tempo demais de leitores menos entusiasmados com livros mas que se empolgam com mensagens curtas, com fofocas e itens assim, de consumo fácil
















Pois bem, numa dessas liquidações de livros, encarei um livro do ator negro americano Sidney Poitier, “Uma vida além das expectativas – Cartas para a minha bisneta”. Joguei de volta umas três vezes na caixa na qual continha outros tantos livros.

O que tem esse sujeito a transmitir?


Relutei, mas acabei comprando a obra não pelo preço baixo oferecido mas por curiosidade porque, afinal, quis saber o que tinha o ator a dizer.

A motivação do livro do ator fora sua bisneta já com dois anos de idade, então, e ele com mais de 80 anos.

Em 23 cartas à sua neta Ayele, conta o ator quase sua vida toda, suas imensas dificuldades com a pobreza extrema, sua baixa educação e, também, embora nascido circunstancialmente em Miami, sua vida até a adolescência fora vivida numa ilha, em Cat Island despojada, então, de qualquer infraestrutura mínima.

[Sim, existe essa Ilha e é hoje um dos distritos das Bahamas assim, como Nassau, a maior cidade, capítal do arquipélago das mesmas Bahamas]. 



Seus pais produziam tomates em Cat Island e um dos melhores adubos, relata o ator, eram os dejetos de morcegos obtidos em cavernas.

Ao se mudarem para Nassau, Sidney com mais de 10 anos de idade, pela primeira vez vira um automóvel pelo que significou para ele um misto de susto e surpresa: “um besouro imenso”- Aquilo é um carro, disse sua mãe.

Ao se mudar para Miami como cidadão americano porque havia nascido nessa cidade, enfrentando forte intolerância racial sem qualquer perspectiva, para sobreviver, passou a lavar pratos.

Mais tarde em Nova York, fez um teste para ator, por curiosidade e porque precisa trabalhar. Foi rejeitado porque mal sabia ler.

Nessa vida de dificuldades uma curandeira profetizara que ele levaria o nome da família Poitier “por todo o mundo”. E assim foi...

Um aspecto que dei pela falta no livro, omitido, infelizmente, foi o que poderemos chamar de “o pulo do gato” para conquistar Hollywood como conquistou, tornando-se o grande ator que ainda hoje é Poitier, já com 90 anos (2017).

Mesmo numa época de racismo intenso nos Estados Unidos, ele ganhou o Oscar em 1964, pela sua interpretação no filme “Uma voz nas sombras”. E um Oscar honorário em 2002

O nível da segregação racial naqueles anos era radical e até homicida.

É o ator que relata um episódio de coragem de uma estudante negra nos idos da década de 60:

...Chalayne Hunter-Gault, uma dos primeiros afro-americanos a frequentarem a Universidade da Geórgia em 1961. Ela suportou a animosidade que a certa altura incluiu um ataque de uma horda de segregacionistas ao seu dormitório com pedras e garrafas. A polícia da cidade teve que conter a multidão, mas ela se manteve firme com coragem...”

De lavador de pratos e semialfabetizado, o ator venceu com muito sucesso numa profissão de poucos, foi reconhecido e respeitado. Ele filosofa, opina sobre o mundo e explana sobre suas crenças, sobre Deus.  Aliás, Poitier nascera prematuro, sua vida periclitou, mas sobreviveu pelo esforço de sua mãe. Ele dá a entender que sua vida foi protegida por Divindades.



O livro é bom.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

ENCONTROS COM HOMENS NOTÁVEIS de G. I. Gurdijieff

Livro 20

Tenho a impressão que os ensinamentos de Gurdijieff já tiveram estudos mais aprofundados no passado. Neste livro, o Autor, falecido em 1949, não se aprofunda nos seus ensinamentos, embora na convivência com os “homens notáveis”, muitas experiências ele relata até de modo jocoso. Esse livro teve uma versão cinematográfica. A sua capa provém de uma cena do filme.





Nas páginas de introdução, pelas palavras de um sábio que respeitava muito, Gurdijieff faz críticas irônicas aos romances que nada trazem de útil e a própria imprensa é desacreditada pelas distorções que pratica na divulgação de notícias. E critica, também, a gramática porque ela poderia tirar a espontaneidade das explanações. Ele falava, pelo menos, uma dezena de idiomas.

Não esperem, porém, que tudo de seus relatos, sejam experiências imaculadas. Não. Por vezes, para sobreviver nas grandes viagens que empreendeu, obrigava-se a obter recursos de modo não muito apropriados.

Por exemplo: apreendera pardais, pintava-os de amarelo e os vendia a bom preço afirmando que eram canários americanos raros.

Mas, não demoraria muito a deixar a cidade porque os pardais poderiam desbotar a qualquer momento...

Além dessa outras práticas foram relatadas que não se enquadram nos limites rigorosos da lisura.

Quando trabalhou na construção de uma linha férrea, sabendo do seu traçado e por quais cidades passaria, remetia a elas um  um assessor sugerindo o pagamento de uma "compensação" de tal modo que poderia desviar o traçado, as beneficiando. Mas, a cidade já constava do traçado!

Como tinha talento especial para "consertar tudo", era comum cobrar preço exorbitante apenas para mudar uma alavanca, fixar uma mola solta, que o incauto desconhecia.

O começo do livro revela sua perplexidade com certos fenômenos que poderiam ser atribuídos a milagres, sem explicação nos conceitos comuns da vida como, por exemplo, um jovem paralítico que rastejando até o túmulo do santo, o beijou e desmaiou. Ao recobrar os sentidos, estava curado, contrariando todas as possibilidades.

Há o relato da manifestação de espécie de zumbi, um espírito brincalhão que se apossa de um cadáver mal sepultado e pratica ações de mau gosto, especialmente contra os inimigos do morto.

Essas manifestações desafiavam sua razão.

Daí, suas viagens pela Ásia Central, incluindo o Tibete foram extensas, demoradas, fixando-se, com seus amigos que pensavam igual a ele, em localidades remotas, em busca do autoconhecimento.

Há descrições de grandes dificuldades que foram superadas nessas viagens que nem sempre revelavam essa busca interior. As viagens resultavam não tanto em revelações espirituais ao autor e seus seguidores, mas experiências de sobrevivência, contatos com tipos humanos que afinal, ajudaram na sua busca:

"Um dia fomos chamados ao recinto do terceiro pátio, em casa de um xeque do mosteiro, que falou-nos com a ajuda de um intérprete. Deu-nos como instrutor um dos monges dos mais antigos, um ancião que tinha o aspecto de um ícone e que, segundo os outros frades, tinha duzentos e setenta e cinco anos."

Experiências não se transferem, mas se relatam. Padre Giovani, italiano, a quem o autor conheceu em Citral (Paquistão), num dos diálogos disse:

"Por exemplo, se meu próprio irmão bem amado viesse, neste momento, até a mim e me suplicasse que lhe desse nem que fosse a décima parte de minha compreensão e de que modo o meu ser quisesse fazê-lo, não poderia sequer comunicar-lhe a milésima parte dessa compreensão, por mais ardente que fosse meu desejo, porque não existe nele, nem o saber que adquiri, nem as experiências pelas quais me foi dado passar a minha vida."

Nessas viagens tão duradouras, longínquas, não havia, pelo que relatado no livro, o elemento feminino, a prática sexual, mas entre seus companheiros de aventuras, a amizade integral, que provinha do “amor profundo”, de irmãos. (*)

Uma sua aliada, Vitvitskais, que viajou muito no grupo e o ajudou nos ateliês de "conserta tudo"`:

"A companheira que acabava de reencontrar era a inimitável e intrépida Vitstiskaia, que andava sempre vestida de homem. Participara de todas as nossas expedições perigosas nos confins da Ásia, África, Austrália e ilhas vizinhas." 

Nessas expedições, nessas aventuras, há momentos de crueldade. Para improvisarem uma jangada e aproveitarem o fluxo de um rio, resolveram abater todas as cabras que haviam servido tanto para carregar as bagagens como para a subsistência com a sua carne. Eram consideradas até então, aliadas.

Gurdijieff assim relata:

“No dia seguinte, começamos a matar as cabras, que ainda na véspera considerávamos, sinceramente, como nossas amigas e associadas em nossos esforços para superar as dificuldades da viagem.”

E ironiza esse ato bárbaro, se referindo a uma “bela manifestação cristã-muçulmana...”.

Os homens notáveis relacionados no livro são nove, incluindo o pai do Autor.

Quanto a este houve entre outros conceitos estes:

1º - Amar seus pais;
2º - Guardar sua pureza sexual;
3º - Demonstrar cortesia com todos, ricos ou pobres, amigos ou inimigos, detentores do poder ou escravos, qualquer que seja religião...
4º - Amar o trabalho pelo trabalho e não pelo ganho.

Entre as muitas máximas de seu pai, lê-se esta:

“Uma verdadeira miséria sobre a terra são as implicâncias das mulheres.”

O padre Borsh, um dos notáveis, dissera que o homem e a mulher para atingirem um grau de convivência devem ter o tipo correspondente para que se completem. Em assim não sendo perdem quase todas as manifestações essenciais de sua individualidade.

E completava:

“Eis porque é absolutamente necessário que todo homem tenha perto dele, no processo de sua vida responsável, um ser do sexo contrário, de tipo correspondente, para que se completem mutuamente sob todos os aspectos.”

Então os notáveis que eu tenha apreendido, não transmitiram sempre algo revelador que não fosse a bondade, a espiritualidade e a amizade.

E um detalhe: embora a cada capítulo, um dos notáveis é destacado, no texto respectivo nem sempre se fala muito dele. O autor aproveita em cada capítulo para relatar suas experiências, suas aventuras e atitudes nem sempre... exemplares




Num velho livro publicado no início da década de 60, “Mente ou Alma” do médico psiquiatra Alberto Lyra, que estudou a psicologia de Gurdijieff, revela que sua personalidade, para os que o conheceram, irradiava força fora de toda comparação, liberdade interior além de ser trabalhador incansável.


Extraído do livro de Lyra, escrevera Peter Ouspensky, seu principal discípulo, sobre sua psicologia:

“A psicologia de Gurdijieff é extremamente prática e racional, porque ela mostra de maneira lógica como é o homem, quais são as suas enormes limitações, mas aponta, também, os meios para superá-las. Sob esse ponto de vista leigo e desprovido de qualquer sentimento religioso, mostra que, afinal de contas, o caminho que o homem tem de trilhar é o mesmo que lhe tem sido indicado pelos diversos instrutores religiosos de todos os tempos.”

(*) Na década de 20 do século XX, ao fundar seu "Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem" em Nova York, ao ser questionado de onde vinha o dinheiros para seus empreendimentos, num tipo de apêndice do livro, em muitas páginas ele trata com detalhes essa "questão material", isto é, quando e como conseguiu recursos para todas suas viagens e projetos. Relata seu trabalho intenso, enfrentando toda sorte de desafios e, às vezes, revertendo situações adversas com novas inspirações e novas iniciativas. 

Um aforismo dele: Quanto piores as condições de vida, melhores serão os resultados do trabalho - contanto que nos lembremos continuamente do trabalho.”

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

PARIS É UMA FESTA de Ernest Hemingway

Livro 19





Não me parece seja este livro daqueles mais festejados do grande escritor americano. São crônicas dos tempos, na década de 20 do século XX, em que vivia em Paris usufruindo das suas belezas e, sobretudo, da boemia. Gostei muito.





Ernest Hemingway reside, então, em Paris, levando vida modesta, escrevendo contos nem sempre aceitos ou publicados pelos jornais e revistas que ele remetia.

E essa dificuldade não era só sua. Os outros escritores – muitos dos quais se consagrariam mais tarde - naqueles dias também não tinham seus escritos publicados com facilidade. E quando ocorriam as publicações, os valores pagos não eram expressivos.

Relata o Autor que, para fazer economia, passava fome mas tinha o sentimento inspirador de que Paris era uma espiração:

“De qualquer maneira, éramos ainda muito pobres e eu vivia tendo que enganar minha mulher, dizendo que recebera convites para almoçar fora. Passava duas horas andando pelos jardins de Luxemburg e, depois, voltava para contar-lhe maravilhas dos tais almoços”.

Uma frase que abre o livro escrita em 1930 para um amigo:

“Se você teve a sorte de viver em Paris, quando jovem, sua presença continuará a acompanhá-lo pelo resto da vida, onde quer que você esteja, porque Paris é uma festa móvel.”

Tinha por hábito trabalhar, escrevendo seus contos num café, um dos melhores de Paris, o “Closerie des Lilas”. Ali, o encontro com os amigos escritores.

A escritora Gertrude Stein ao ouvir do patron de uma oficina que admoestava um mecânico que nada fizera no seu Ford exclamara:

- Vocês todos são uma génération perdue.

Ao que ela emendou tendo Hemingway presente:

- É isso mesmo o que vocês são. Todos vocês, essa rapaziada que serviu na guerra. Vocês são uma geração perdida.

Hemingway nunca aceitou essa expressão de “geração perdida”.

Mas, preservava sua amizade com a escritora Gertrude Stein e quando “já não era a mesma coisa” observou:

“Quando uma antiga amizade não se refaz por completo, é na cabeça que a gente sente mais. Mas do que servem essas palavras? A coisa era muito mais complicada do que isso, e jamais conseguirei explica-la direito.”

[Numa legenda sob a foto de Gertrude Stein no livro “Paris é uma festa” lê-se que fora autora de literatura experimental e influente nos círculos culturais de vanguarda, colocou Hemingway sob suas asas e lhe deu caloroso apoio].

O escritor Scott Fitzgerald, autor do livro “O grande gatsby” filmado pelo menos três vezes por Hollywood em épocas diferentes, certo dia revelou a Hemingway um comentário de sua esposa que se referira não ao desempenho mas ao volume do seu órgão genital.

Hemingway, o tranquilizou quanto ao tamanho, ressaltando que a esposa do amigo enlouquecia, recomendando que fosse ao Louvre e examinasse a proporção das estátuas:

- Depois, vá para casa e olhe-se um espelho de perfil.


Há muito mais...



.//. 

Ernest Hemingway suicidou-se em 1961. Filme relativamente recente, “Papa”, revela sua intimidade nos últimos anos de sua vida atribulada.

Era um suicida em potencial, diga-se.

Poucos anos antes do gesto extremo que consumou em 1961, ele se queixava de que não conseguia mais escrever e que se tornara um impotente sexual.

Recebia carinho dos amigos e da esposa, embora esta muitas vezes se revelasse agressiva e irascível comportamento que poderia ter-lhe enfraquecido a “força do seu espírito”.

















Jardim de Luxemburgo - Paris

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

SÓCRATES de PLATÃO



LIVRO 18



Sócrates que nasceu e morreu em Atenas (470 – 399 a.C.) não deixou nada escrito. Tudo o que dele se sabe provém de seu discípulo, Platão (Atenas, 428 – 348-7 a.C.). Em suas obras divulgou diálogos nos quais se sobressaem ensinamentos de seu mestre. Há questionamento constante nesses textos, o que seja de Sócrates ou o que seja de Platão que, no caso, se valeria de seu mestre para explanar suas próprias ideias. O método de Sócrates fora a maiêutica que consistia em obter do discípulo e de quem mais se houvesse com ele todo o conhecimento a partir dos questionamentos que fazia. 

Os diálogos abaixo, obras de Platão, resumidos e comentados neste trabalho, apresentam princípios do pensamento de Sócrates de um modo ou outro tendo relação direta ou indireta com o julgamento e pena de morte que lhe fora imposta.

Meditando um pouco encontra-se em Sócrates algo de crístico.

A íntegra dessas obras são encontradas facilmente em plataformas de buscas, gratuitas.

 

EUTÍFRON

Reverência aos deuses mesmo nos excessos

Eutífron encontra Sócrates próximo ao Pórtico dos Reis e o questiona o que lá fazia indagando se teria ele, também, alguma ação judicial.

Sócrates diz que respondia a uma ação criminal pública porque fora acusado por um certo Meleto que teria proposto acusação vil, a de corromper a juventude. Diz Sócrates que ele instrui os jovens na idade mesmo do acusador, para “torná-los virtuosos, da mesma maneira que o bom lavrador se preocupa primeiramente das plantas tenras e depois das outras”.

Essa sua habilidade e sabedoria na instrução dos jovens teriam suscitado a cólera de muitos pela inveja ou alguma outra razão.

Então, Eutífron, um adivinho, diz a Sócrates que pouco sabia de Meleto e que lá estava como acusador do próprio pai, um homem velho, qualificando-o de homicida. E ele explica que um servo embriagado degolou outro. Então, seu pai deteve o criminoso, o acorrentou e o "encarcerou" num fosso e esqueceu o prisioneiro que morreu de fome, de frio e pelas correntes. E disse mais que essa sua decisão era contestada porque o assassino de um ou outro modo fora castigado e também "afirmam ainda que é cruel um filho acusar seu próprio pai de homicídio. Mal sabem eles, Sócrates, o que é piedoso ou cruel aos olhos dos deuses."

Sócrates, demonstrando assombro pelo que ouviu de Eutífron o indaga se ele estava certo do que pensavam os deuses, até porque eles se digladiavam no panteão o que poderia ensejar posições contraditórias entre a piedade e a crueldade.

Ora, Eutífron já era criticado pela fragilidade de seus argumentos para acusar o próprio pai. Mas, ele dizia que é piedoso exatamente aquilo que todos os deuses aprovam, enquanto é ímpio tudo o que os deuses rejeitam.

E Sócrates: "Compreende que talvez eu te pareça mais infame que os juízes, já que é evidente que pretendes provar-lhes que o que foi feito por teu pai é injusto e, mais, execrável aos olhos dos deuses."

E, ademais, o que é piedoso aqui pode ser execrável lá...

E a partir daí, a cada argumento, o filósofo demonstrava a fragilidade do posicionamento de Eutífron no tocante ao conceito de "piedade".

E pede que o acusador defina o que é ser piedoso sem considerar a opinião dos deuses. Mas, Eutífron, mantém sua crença.

E, então, segue Sócrates embaraçando os conceitos de Eutífron aproveitando suas vacilações quanto aos "piedosos" afirma não haver razão para acusar seu próprio pai além de desprezar a opinião dos homens.

Eutífron, então, se retira, dizendo que estava apressado ao que Sócrates lamenta porque tinha esperança de se livrar das acusações de Meleto pelo que poderia ter aprendido com ele sobre "assuntos divinos" e levar dai por diante uma vida melhor... 

MÊNON

Questões sobre a virtude

Mênon pertencera a uma família da nobreza originária da cidade de Farsalo, na Tessália. Esse diálogo pode ser situado no ano 402 a.C. 

O diálogo entre Mênon e Sócrates se refere à virtude. O que é virtude?

Tudo começa ao indagar, Mênon, a Sócrates se a virtude é coisa que se ensina ou que se adquire pelo exercício ou algo que advém aos homens por natureza ou por alguma outra maneira.

Sócrates responde que não sabe dizer se é coisa que se ensina ou de que maneira ela se produz. Então, diz ele, "estou longe de saber se ela se ensina ou não, que nem sequer o que issoé,  a virtude, possa ser, me acontece saber, absolutamente." 

Então, Mênon, dá sua primeira definição que consistira, a virtude, em ser capaz o homem de gerir as coisas da cidade e nessa gestão fazer bem aos amigos e mal aos inimigos e cuidar  ele próprio de não sofrer alguma coisa assim e, quanto às mulheres, cuidar bem da casa, de seu interior e sendo obediente ao marido.

Claro que Sócrates condena essa definição que não contemplaria, num único conceito "o que é virtude". 

Depois de tantas indagações de Sócrates, Mênon reclama que o filósofo caia em aporia, fato que na visão dele, Mênon, já não sabia mais ele próprio,  o que era virtude, E ouvira dizer que o próprio Sócrates constantemente caia em aporia.

(Aporia: duas opiniões divergentes sobre o mesmo tema, dando-se um "impasse" dificultando o aprendizado).

E a partir daí Sócrates indaga se a virtude é ciência ou "coisa". Se for ciência se a ensina; se não for ciência ninguém a ensina. Ademais, não há mestres que a ensinam.

Sócrates depois de tantas proposições próprias do seu modo de obter conhecimento,  se refere a estudiosos que dizem ser imortal a alma do homem e depois do que se chama morrer, sucede o nascer de novo, muitas vezes e mantém conhecimentos obtidos nas vidas passadas mas necessitando serem relembrados.

Com um escravo de Mênon que chama ao acaso, para provar conhecimentos sem ter sido ensinado, um escravo que vai respondendo testes geométricos com acerto de modo a comprovar conhecimentos de outras vidas.

(Não seria intuição, fenômeno que se define mas não se explica...convincentemente? Intuição não foi mencionada no texto; e outro ponto: Sócrates acreditava nos renascimentos sucessivos? Alma imortal? Sobre isso esse tema voltará em outros diálogos).

"E se a verdade das coisas que são está sempre na nossa alma, a alma deve ser imortal, não é?" pergunta Sócrates. E, nesse raciocínio, aquilo que acontece e não se lembra, "é necessário, tomando coragem, tratares de procurar e de rememorar".

Essa mudança de rumos no diálogo, no meu modo de ver, é uma preparação para uma mudança de Sócrates nesse debate sobre a virtude.

No meio desse diálogo, agora na presença de Ânito, que hospedava Mênon, provocado por Sócrates diz, Ânito, que todo homem de bem de Atenas é virtuoso e superior aos sofistas que cobram para transmitir sua sabedoria mesmo aos jovens. E Ânito critica os sofistas de modo exacerbado mesmo sem nunca ter se aproximado de de nenhum deles. Então Sócrates, percebendo-o exaltado lhe pergunta como pode ter esse juízo dos sofistas sem os conhecer. 

Ânito seria depois um dos principais acusadores de Sócrates no processo crime proposto por Meleto, participação que teria resultado em sua pena de morte.

Por fim, Sócrates aceita o valor de uma opinião correta, que ensina os bons caminhos a ser trilhados e diz que a virtude  é uma concessão divina que "nos aparece como advindo, àqueles a quem advenha".

Mas, não fica afastada a necessidade de empreender a pesquisa para o que é "afinal a virtude em si e por si mesma".

Em outros diálogos Sócrates se refere à virtude como conduta digna, justa e honesta.

APOLOGIA DE SÓCRATES

A defesa e uma pena injusta

Vimos no diálogo entre Sócrates e Eutífron que o filósofo fora denunciado por Meleto perante o júri de Atenas. Eutífron também não conhecia Meleto diante do questionamento de Sócrates que, naquele momento, não deixava de revelar alguma preocupação

Mas, a acusação que haveria Sócrates que enfrentar era esta:

"Sócrates é culpado de não aceitar os deuses que são reconhecidos pelo Estado, de introduzir novos cultos, e também é culpado por corromper a juventude. Pena: a morte".

As razões, todavia, que mais explicam, talvez, o ódio que amealhou o filósofo, eram a sua inteligência e sabedoria, a ponto de ter revelado, o Oráculo de Delfos, ser ele o mais sábio entre todos em Atenas.

Fora seu amigo Querefonte quem consultara o Oráculo sabendo se em Atenas havia alguém mais sábio que Sócrates. A resposta fora pela negativa, mas Sócrates sempre diria que o verdadeiro sábio é aquele que sabe que não sabe.

Essa referência do Oráculo fez com que Sócrates pesquisasse entre vários sábios se seriam mais sábios do que ele. Mas, Sócrates concluiu que nenhum daqueles o superavam.

Para essa conclusão, buscara os supostos sábios políticos. Mas, constatou que entre eles não havia sábios; buscou os sábios poetas concluindo que o expressado na poesia era uma inspiração natural como os adivinhos e os vaticinadores mas deles se afastou porque não eram sábios e, por fim, buscou os artesãos famosos e entre eles também não encontrou sábios.

Diz Sócrates:

- Este é o motivo pelo qual, finalmente lançaram-se contra mim Meleto, Ânito e  Licon: Meleto profundamente irado por causa dos poetas. Ânito por causa dos artesãos e políticos e Licon por causa dos oradores. 

Então, na continuidade de sua defesa, frente a frente com Meleto, o acusador se mantem retraído quando questionado sobre a acusação de que Sócrates corrompia os jovens. 

Não havia provas formais, não havia testemunhas. Sócrates pôs-se a desmentir simplesmente Meleto, alegando que fez melhores os jovens e o interpela:

- Vês, Meleto, como ficas calado, sem saber o que dizer? E isto não te se afigura vergonho e prova suficiente de que afirmo que nunca te preocupaste com estes assuntos?

Meleto simplesmente respondeu que são as leis que fazem melhores os jovens...

Meleto reafirma que Sócrates não acredita nos deuses porque afirma que o sol é uma pedra e a lua feita de terra.

Sócrates se refere a Anaxágoras que nos seus livros tem esses mesmos ensinamentos e diz:

- Ninguém acredita em ti, ó Meleto, e naquilo que afirmas, creio que não consegues persuadir nem a ti mesmo

Platão informa que a condenação de Sócrates não se dera por questões religiosas mas políticas por sua repulsa aos governos democráticos". Não colhi informações se as ideias de Sócrates se sua crença na imortalidade da alma e renascimentos sucessivos como ele parece admitir no diálogo com  Fédon, tiveram influência no julgamento.  

Sócrates informa que não trouxe seus filhos para emocionar o tribunal e obter sua absolvição e que não queria misericórdia, mas justiça atribuindo as acusações a falsidades dos acusadores.

E afirma amar os atenienses, mas que obedecerá primeiro o deus do que a eles e que "enquanto tiver ânimo, e enquanto for capaz não pararei de filosofar, estimular-vos e censurar-vos..." 

Mas, chega a admitir a condenação em multa. Quanto a ele poucos recursos teria para responder a essa pena, mas informa ao júri que Platão, Críton. Critóbulo e Apolodoro, homens dignos de crédito e confiança serão garantidores da quantia, de 30 minas.

Mas, com todo o esforço de sua defesa, de sua coerência fora injusta a condenação à pena de morte pela ingestão da cicuta.

Palavras finais de Sócrates aos juízes que absolveram:

"Bem, chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, se eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade."

CRÍTON

Cumprimento da lei

Este diálogo se dá entre Críton e Sócrates quando já condenado o filósofo à morte.

Críton se aproxima do leito de Sócrates e se surpreende com a serenidade do seu sono, a poucas horas do cumprimento imposta pelo julgamento.

Então, Críton, que tinha verdadeira admiração pelo filósofo, propõe que fugisse da morte e se refugiasse na Tessália, porque "ali possuis amigos que te distinguirão com honrarias como mereces e de protegerão contra qualquer investida".

E diz Críton que a saída de Atenas, não teria grandes complicações porque não diz mas a prática que propõe é subornar de modo a facilitar a fuga porque o valor nem seria alto - os subornados tinham limitações econômicas - e porque dispunha de bens para tanto, inclusive, se o caso, contaria com a ajuda estrangeira que colocaria renda à disposição de Sócrates.

Críton dissera a Sócrates para não se preocupar com eventual perseguição que poderia sofrer pela sua fuga.

Ademais, lembrava a Sócrates que sua entrega à morte traria problemas aos seus filhos pela sua obrigação em alimentá-los e educá-los que sofreriam com a orfandade.

Fora Sócrates quem, afinal, se submetera ao juízo da República?  Como lhe criticara Críton: "Sócrates, sinto vergonha por ti e por nós, teus amigos; além de acusarem a nossa covardia por permitir a consumação diante desse tribunal, o que poderias ter evitado, depois pela vergonha do teu processo..."

Mas, vai Sócrates rejeitando a proposta de fuga porque em Atenas sempre cumprira as leis, leis que lhe davam liberdade. E lembra a Críton que a proposta de fuga seria louvável se estivesse em linhas com as normas da justiça pelo que seria desonroso quanto mais se distanciasse delas. 

E, ademais, "não devemos cometer injustiças contra quem as cometem contra nós", não é justo praticar o mal a uma pessoa ou por causa do que pensa o povo, pagar o mal com o mal e também porque  "não existe diferença entre praticar o mal e ser injusto."

E se é ímpio praticar violência contra o pai ou a mãe, "é muito mais ímpio praticá-la contra a pátria. E, assim, todos aqueles que amam a pátria na qual se fixou pela fuga, certamente que olharão o fugitivo como "adúltero" das leis...

E, em Tessália que tem menos ordem, certamente que muitos dirão: "Eis um velho que, já com pouco tempo para viver e por ser de tal maneira apaixonada pela vida, não hesitou, a fim de conservá-la, em transgredir as leis mais sagradas".

E quanto aos filhos, em Tessália, pergunta Sócrates, sendo eles estrangeiros em sua própria pátria e estando longe de Atenas seriam melhor educados? E se  fosse ele para Hades (mundo inferior, dos mortos) com a morte?

E depois de toda essa preleção, Sócrates pede a Críton que se separassem e que seguissem "pelo caminho por onde o deus nos guia."

FÉDON

Imortalidade da alma e renascimentos 

Este, o ultimo diálogo antes da ingerir o veneno mortal, teve a presença de diversos dos discípulos de Sócrates, mas não Platão, adoecido.

Fédon explica que houve demora na execução da pena porque houvera uma solenidade de barco coroado que iria até  Delos aguardando sua volta a Atenas. Esse barco seria o mesmo "no qual Teseu embarcou para Creta os sete moços e sete moças que ele salvou, salvando-se também". E a promessa feita a Apolo, por isso, fora de todo ano, oferecer uma oferenda a Delos. Essas homenagens atrasaram o cumprimento da pena porque nesse lapso ela ficaria suspensa.

Xantipa, a esposa de Sócrates - "conhecida pela suas implicâncias", mas o que diria do marido? - lá estava ao seu lado tendo um dos seus filhos nos braços. Ela foi afastada do grupo por um dos escravos de Críton.

A Equécrates, Fédon promete relatar da melhor maneira todos os diálogos entre Sócrates e alguns dos seus discípulos sobre a vida, o suicídio, sobre renascimentos sucessivos e a imortalidade da alma.

No tocante ao suicídio, há que se lembrar do diálogo com Críton que propusera pagar a fuga do seu mestre para Tessália mas obtendo a pronta rejeição de Sócrates.

Não fora aí, ao respeitar as leis que o condenaram, um julgamento injusto, mas aceitando a pena de morte, um modo de "fugir" da vida?

Até que ponto se deve negar o suicídio?

Sócrates rejeita o suicídio, todos devendo aguardar que o deus "nos envie uma ordem formal para sairmos da vida, como a que hoje me envia."

Sócrates, em algumas passagens fala em Hades - um local de acolhimentos dos mortos, normalmente considerado, um mundo inferior - para se recolher após ingerir o veneno ou algum outro local para o acolhimento de uma alma como a dele.

E, prosseguindo, sobre o corpo físico, diz Sócrates que é ele que impõe mil obstáculos, que provoca enfermidades, ilusões, receios e amores desejos de toda ordem e, principalmente, pela paixão, a eclosão de guerras que visam apenas o poder e riquezas, afastando a todos da busca pela verdade.

Por isso o filósofo se prepara para a morte e pelo seu trabalho, ela não se afigurará  horrível. E com a morte "seja (a alma) em si mesma" e "por si mesma" o que pode afligir àqueles que chegam a esse momento mesmo com a promessa de se verem livres e encontrar o que aspiraram, um pensamento de pureza.

Mesmo com questionamentos feitos por Símias e Cebes sobre a imortalidade da alma, ao morrer e se daria naquele dia, pelo seu modo de vida, de filósofo, de vida simples, sem vícios, esperava  Sócrates juntar-se a homens justos, bons senhores e deuses muito bons pelo que seus discípulos não devem se preocupar, E, depois, "é uma opinião muito antiga que as almas ao deixarem este mundo pela morte, vão para o Hades e que dali voltam para a Terra e retornam à vida..." Porque os vivos nascem dos mortos e estes daqueles.

E um ponto importante: muitos conhecimentos são trazidos dessas vidas passadas, pois "não afirmamos que esse homem lembra o que surgiu em sua imaginação"?

(V. diálogo com Mênon).

E essa consciência entre outros princípios inclui também, a beleza, a bondade, a justiça, a santidade.

Na sua primeira existência, as almas que se afasta do corpo, maculada pelo vício, impura, acreditando que nada existe além do físico receiam ingressar no mundo invisível do  Hades, ficam vagando pelos cemitérios, pelos túmulos, na verdade fantasmas medonhos que podem se tornar visíveis.

E assim ficam, até que pelo amor que se dedica a essa massa corpórea (pergunto: quem dedica amor a essa massa corpórea?) Sócrates se refere à metempsicose qual seja a de encarnar essas almas que se comportaram sem comedimento, sem pudor, renascerem em asnos e animais semelhante as que se dedicaram à injustiça, à tirania, à corrupção reviverem em corpos de animais como lobos, gaviões, falcões.

E os bons, virtuosos, na sua primeira existência, renascem em locais mais agradáveis incorporam animais pacíficos como abelhas e formigas, porque são espécies trabalhadoras ou então regressarão em corpos humanos "a fim de serem homens de bem". (*)

Segue Sócrates nas suas lições, respondendo aos seus discípulos sobre a imortalidade da alma:

- Logo, meu estimado Cebes, a alma é um princípio imortal e indestrutível, e nossas almas resistirão ao Hades.

(E em assim sendo, renasce seguindo em outras vidas, mantendo na alma a memória do conhecimento adquirido que precisa ser relembrado).

Sócrates profere longo discurso defendendo essa sua crença.

Nas últimas páginas do relato de Fédon, parece ter descrito Sócrates, a visão dum paraíso a partir da possibilidade de ver a Terra do alto e, desse modo, ver sua curvatura e toda a sua beleza. E também se refere a um tipo de inferno que se daria no rio Tártaro no qual serão precipitados os pecadores graves, homicidas, ladrões do qual nunca sairão. 

Sob muita emoção, chega a hora fatal, a hora do cumprimento da pena. Muita emoção de todos os que lá estava, inclusive do carcereiro.

Sócrates de despede dos filhos e da mulher. Críton diz que cuidaria deles. 

Momentos depois de ingerir a cicuta, já não sentia as pernas e quando o líquido chegasse ao coração ele faleceria,

Mas, Sócrates fez um último pedido:

- Críton, devo  um galo a Asclépios. Por favor, paga a minha dívida, não te esqueças.

Fédon diz a Equécrates que fora Sócrates "o melhor homem entre todos que conhecemos, o mais sábio e o mais íntegro".

(*) Esse texto, nas minhas limitações, vou confessando, me complicou. Li diversas vezes e não consegui atinar bem com o que quis dizer o filósofo; o que posso dizer é que para mim, mesmo falando em "primeira existência", a aceitação da metempsicose me pareceu uma contradição a tudo o que dissera Sócrates. Se um mito, que seja, mas ela está expressada no texto. Correntes espiritualistas explicam reencarnações às almas desvirtuadas pela "lei da causa e efeito" e sofrem "os efeitos".



ENTREVISTA COM SÓCRATES

Espera o repórter ter sido fiel ao pensamento do "entrevistado". É que muitos são os repórteres que no meio de uma entrevista colocam seu próprio pensamento não necessariamente o pensamento do entrevistado.



Num momento de sono, depois de ler essas obras clamo por Sócrates. Sua imagem conhecida nas enciclopédias se materializou:

Sócrates: Você me chamou? Eis-me aqui, o que deseja? Novamente me condenar?

Sem surpresa em o ter comigo, mas com emoção comecei a entrevista:

- A sua polêmica sobre a virtude com Ménon. porque sei que nos seus diálogos essa palavra aparece naquele sentido de conduta social justa, honesta...

Sócrates: Sim, é que virtude tem a ver com sabedoria, com a justiça e a honestidade, mas pode ter significados contraditórios no tempo e no local. Um herói de guerra será um virtuoso num lugar e iníquo perante suas vítimas.

- Me diga, Sócrates, com a sua fama merecida de sábio e suas palestras públicas como pôde ser acusado de corromper a juventude e difundir ideias contrárias à religião tradicional?

Sócrates: Foi um certo Meleto quem comandou essas acusações. Pelo jeito ele e seus aliados, Ânito para citar um, foram muito convincentes, porque fui condenado à morte bebendo cicuta. Eu tinha inimigos. Invejosos... 

- Além dessas falsidades e da injustiça se bem sei, e como sei pouco! – parece que sua sapiência, afirmada pelo oráculo de Delfos que ninguém o superava, também incomodava seus acusadores...

Sócrates: Sim, é verdade, mas na minha defesa eu deixara claro que “o verdadeiro saber consiste em saber que não se sabe”. E mais, proclamara: “... é muito sábio entre vós aquele que, igualmente a Sócrates, tenha admitido que sua sabedoria não possui valor nenhum”. Sobre a justiça, nem sempre ela se manifesta, muitos são os que lavam as mãos.

- Mas, eminente e imortal filósofo, seus discípulos propuseram pagar pela sua liberdade, seria fácil...

Sócrates: É verdade, mas disse a Críton que numa outra qualquer cidade de fuga poderia ouvir: “eis um velho que, já com pouco tempo para viver e por ser de tal maneira apaixonado pela vida, não hesitou, a fim de conservá-la, em transgredir as leis mais sagradas”. Disse isso, mas me referia na verdade às próprias cominações que eu mesmo enfrentaria com a fuga.

- Mas, a vida não se sobrepõe a esses comentários populares? Como ressaltou em sua defesa o senhor tinha família e três filhos para criar, um já crescido e duas crianças. Não haveria aí um compromisso com a vida?

Sócrates: Essa sua indagação parece conduzir a minha resignação à morte à qual fui condenado como se fosse um suicida. Mas, eu disse a Cebes que não aceitava o suicídio, porque “os deuses cuidam dos homens e que os homens são posses dos deuses”. Por isso, “é necessário aguardar que o deus nos envie uma ordem formal para sairmos da vida, como a que hoje me envia.” Mas, disse também que “um homem que se insurge no momento da morte não ama a sabedoria, mas sim o seu corpo, e esse homem amará também as riquezas, as honrarias...”

- Em alguns momentos, acreditando que a alma dos justos tem um lugar entre os justos, seus iguais, não foi o senhor um pouco cruel em se referir ao corpo, ao físico?

Sócrates: O corpo nos enche de amores, de desejos, de receios, de mil ilusões e de toda classe de tolices...”Quem faz nascer as guerras, as revoltas e os combates? Nada mais que o corpo, com todas as suas paixões.” Essas “guerras têm origem apenas no desejo de acumular riquezas e somos obrigados a acumulá-las, para servi-las, como escravos, em suas necessidades.”

- O senhor defendia o renascimento (reencarnação)...

Sócrates: São conhecimentos que adquiri. Sempre acreditei que os vivos nascem dos mortos, como estes daqueles, prova de que as almas dos mortos existem se não em Hades, em algum lugar, do qual retornam à vida. Quando voltam à vida elas já têm conhecimentos e podem relembrar até pela imaginação.

- Estou um pouco confuso. Parece que o senhor, nas explanações a Cebes, aceita a metempsicose e ao mesmo tempo assume posições que a contradizem: sim, o senhor dissera que os descomedidos sem pudor, penetram nos corpos de asnos e animais semelhantes e os que cometeram injustiças, tiranias e rapinagens, animam os corpos de lobos, gaviões, falcões... os animais são bons respeitando os seus instintos, penso, mas, então, a contradição: em outro momento o senhor defendeu que se a alma maculada, impura, se afasta do corpo, é ela carregada com esse peso e, com medo do mundo invisível, do Hades, se torna visível, vagando em volta dos túmulos, dos cemitérios, fantasmas medonhos, espectros assustadores...

Sócrates: Sim, eis ai um mito - o da metempsicose, como você identifica - mas almas perdidas, cruéis ficam fora do mundo invisível que elas temem estar no Hades e podem ser visíveis em imagens medonhas.

- Insisto: as almas que se dedicaram à injustiça, à tirania, e às rapinagens não renasceriam, em vez de em corpos de lobos e de gaviões, em corpos humanos com traumas e deficiências?

Sócrates: Acho mesmo que o senhor já tem as respostas... mesmo dos renascimentos. As almas são imortais e renascem. Estarei me retirando agora. Meu tempo está esgotado.

Pude ainda dizer-lhe antes de acordar:

- Perdoe-me pela minha ignorância, grande filósofo – que até agora nos incita à reflexão. Espero que alguém mais instruído me interpele para esclarecer esses e outros pontos que ainda tenho dúvidas.


Sua imagem foi desaparecendo devagar. Mas, pude ver, num último instante, que naquela sua imagem severa, esculpida, seus olhos límpidos haviam brilhado. E brilham até hoje, 2,5 mil anos depois.